sábado, 27 de setembro de 2014


Ao longe eu vejo o frio. Vestindo suas roupas cinzas que cobrem toda a extensão de seu corpo branco, permitindo apenas a visão dos olhos escuros, perdidos diante à imensidão do tudo e do nada. Deixa suas pegadas congeladas por onde passa. O pouco calor que há em seu interior se dissipa em forma de vapor quando expira. E logo desaparece. Por um segundo, ou até mesmo dois, existe apenas desalento dentro do seu coração, até que o calor se renova mais uma vez, aguardando que o processo ocorra novamente.
Não muito longe, é possível ouvir o choro desesperado daqueles que não o querem por perto. Todos temem o frio. Todos temem a destruição que ele pode causar e as vidas que consegue levar. E se afastam. Fogem em busca da proteção, deixando-o acompanhado de sua velha companheira: a solidão. E eu nunca irei compreender a razão por trás desse repúdio. Nunca compreenderei a incompreensão. Se ao menos as pessoas que o temem percebesse a beleza que carrega em suas costas, pois traz o crepúsculo gelado e a divina aurora, que bruxuleia junto das estrelas que antes nunca existiram. Os lagos inertes espelham essa incomum beleza álgida. E o frio chora. Chora de tristeza. Chora de culpa. Culpa que não tem. Chora toda a sua beleza que se manifesta em cores verdes, cores escuras e pontos brilhantes.
E eu observo. Não corro. Observo o frio chegar. Se aproximar. Cada vez mais o sinto dentro de mim. A calma que ele proporciona inunda a minha alma, e juntos somos dois vazios. Acredito que seja por esse motivo que eu não o tema. Por tais razões eu tenho a paciência necessária para observar as constelações que emergem em um céu degradê, variando do negro para o azul claro. Um jogo de cores que não se iguala a qualquer coisa que eu já tenha visto. E percebo que até mesmo o frio possui a sua graça. Sento em minha cadeira, admirando a pintura da natureza, com suas montanhas rochosas cobertas de neve no plano de fundo; o reflexo da vida nas águas congelantes; o horizonte infinito que se expande em minha frente; a figura melancólica e cinza do frio com seus passos demorados. Por um momento em que o silêncio conquista meus ouvidos, me questiono se eu também não sou como ele. Dono de uma tristeza inexplicável, mas que esconda algum tipo de beleza surreal.
Me parece improvável.
Mas o que é improvável?
O frio, então, revela a sua face. As suas faces. Se despe de suas roupas e eu enxergo tantas coisas. Tantas coisas que eu sou, tantas coisas que eu já fui, tantas coisas que ainda preciso ser. Em sua forma mais pura, abre os braços e se joga contra mim. Sinto o arrepio descer pela espinha conforme minha mente é tomada por aquela força inexplicável da natureza. Estou tremendo, vivenciando um estado de delírio emocional. Um êxtase inigualável. O gelo está em minha garganta, está em toda a minha pele e em meus órgãos. Meu coração bate mais lentamente e se transforma em uma pedra de gelo que aos poucos morre. Na minha frente surgem imagens incompreensíveis, mas eu sei que elas mostram tudo o que eu posso ser. E, de repente, surge a calma. Vem como uma onda, que me arrebata daquele deslumbramento inconcebível.
Há calma. Há uma necessidade de ficar sozinho. Há lágrimas escondidas em mim. Há um sorriso em meu peito, que deseja não se revelar em meus lábios, mas que demonstra a minha felicidade por sentir momentaneamente um pouco do calor da vida. Afinal, eu não estou completamente morto. E ao conceber tal informação, minha mente trabalha de todas as maneiras possíveis. Posso sentir a sinestesia do mundo ao meu redor. Por uma fração de segundo, me sinto onipotente. Então me dou conta daquele simples fato.
Eu sou o frio.