terça-feira, 2 de julho de 2013

Bacaninha

Oito horas da noite. Chovia. Não, não chovia. Chovia muito. Chovia a ponto de eu poder fazer um xingamento desnecessário. Mas não vou, afinal, não há o menor objetivo nisso. Além de que tenho me encontrado numa mania chata de politicamente correto, sabe? Aí eu fiquei ali, por alguns minutos, observando a água torrencial que caía. Daí comecei a pensar. Pensar nas coisas mais fúteis da vida; vez ou outra lembrando de outras mais importantes. Refleti sobre minha existência na terra. Qual o meu significado aqui. Não cheguei em nenhuma resposta e então resolvi ponderar sobre o que haveria em casa pra comer. Afinal, a larica tava braba. De dar dor de cabeça, saca?

O ônibus estava vazio. Um sábado a noite chuvoso, acho que realmente não havia muito o que fazer senão ficar de baixo do sofá, assistindo algumas séries e comendo qualquer coisa. Ou você podia sair por aí e tentar esfriar a cabeça, assim como eu. Esfriar até demais. Dar uma enxaguada nos pensamentos, tentar não morrer interiormente, não antes da hora.

Subiu uma moça com uma criança. Bem aquele estereótipo: fofinha, pequena, dá vontade de apertar, olhinhos fechados. Enfurnada em roupinhas de frio. Uma graça. Desajeitada, a moça passou a roleta com bolsa, guarda-chuva e uma criança. Eu poderia ter ajudado, mas estava na parte mais central do ônibus, sabe? Bem no finalzinho do centro, onde ficam aqueles bancos mais elevados por causa da roda. Mais perto dela havia um senhor e dois outros jovens. Eles a auxiliaram, foram mais rápidos do que eu. Ou mais educados.

A senhora se sentou no banco que estava na frente daquele em que eu me encontrava. A garota estava acordada, mas tão quieta. Uma coisa tão bonita. Silêncio. Aprecio o silêncio. Voltei minha atenção para a janela. Para a chuva. Senti minha boca seca e minha garganta também. Horas sem beber nada, dá uma agonia isso. Lavaria a mão assim que chegasse em casa e então iria até a geladeira, procurando por qualquer garrafa de água. Nem pegaria o copo, seria direto no gargalo. Meio anti-higiênico isso. Mas eu nem encosto a boca, mantenho sempre uma distância segura. Acho que assim não tem problema.

Normal.

O motorista resolveu parar de fumar e ir trabalhar. Abandonou os colegas na rodoviária, tragou uma vez e jogou fora aquele cigarro, ainda com uma pequena brasa que logo foi dissipada. Se colocou em posição e nos guiou para nossos rumos. A melhor coisa de passear de ônibus quando tudo está calmo é que você pensa nos mais diversos tipos de coisa. É bacana o sentimento. Mas ainda assim, odeio ônibus. Talvez seja o sentimento de claustrofobia. Mas no metrô isso é pior. Sei lá. Mas acho que no metrô eu teria menos chances de sofrer um acidente. Tem que ver isso também, né? Nunca se sabe. Às vezes imagino como seria o choque entre dois trens. Devastador, com certeza. Mas improvável de acontecer. Impossível ou improvável? Sei não.

Digressões...

Fez o trajeto de sempre. Passou por uma parte mais complicada. Tipo, perigosa mesmo, sabe? Ou será que era paranoia minha? O bairro em volta era completamente tranquilo, mas aquele lado ali sempre me deu calafrios. Pode ser um preconceito besta, mas a mente imagina mil possibilidades, né? Mas o bom é que logo eu chegaria. Levaria uns cinco minutos de ônibus. Legal era imaginar que, com um ônibus, dá cinco minutos de viagem do ponto A ao B. A pé, esse mesmo trajeto pode levar uns quarenta minutos. Talvez eu tenha exagerado, mas uns trinta levaria. Sem dúvida.

Me preparei, né? Tava longe ainda, mas a gente sempre fica ligado. Aí parou num ponto, o casal de jovens desceu. E numa tentativa de passar despercebido, me surge um bacaninha tentando enganar o motorista. Ele achou que foi sorrateiro o suficiente pra não ser notado pelo velho e sua experiência de vida, mas nós dois estávamos cientes que o cara no comando apenas não queria se estressar. Queria ir pra casa tanto quanto eu. Vida de condutor de ônibus deve ser depressiva pra cacete, né? Sei lá, parece que é. Dificilmente vejo um feliz. E passam o dia cheirando a cigarro e café, além de ficar com aquele som irritante zumbindo a cada puxão na cordinha ou apertando os botões. Alguns chamam de "cigarra". Eu prefiro "dar o sinal" mesmo. Soa melhor. Ah, e sem falar dos passageiros problemáticos.

O bacaninha ficou ali, meio tenso. Usava uma bermuda azul e uma camisa branca onde havia os dizeres "Save The Future". Bem irônico para a situação na qual me encontrava. Não dava mais do que quinze anos pro moleque de roupas surradas. E ele tava ali, na atividade, meio confuso. Inquieto. Será que ele sabia o significado das palavras na camisa?

Bacaninha se levantou. Havia gostado desse nome. Bacaninha foi perto do motorista, não podia passar por causa da roleta, que ficava mais a frente. "Aí motô..." o ouvi dizer. E só isso, não queria saber o que tava acontecendo ali na frente. E então bacaninha me surge com uma arma na mão e manda o "motô" parar. O cara, na sua longevidade e décadas de labuta, ignorou o indivíduo armado. Daí ele resolveu disparar pra afirmar que não tava de brincadeira. Pois é, sempre foi mania de gente velha querer subestimar os mais jovens. O tiro acertou só o vidro, então ninguém se feriu. O guia parou e o garoto fez o assalto. Ele estava tremendo, mas não perdoou ninguém. Nem o senhor mais a frente, nem um grupo de senhoras mais ao fundo. A moça com o bebê então não fez nenhuma diferença pra ele, apenas roubou celulares e dinheiro. E veio pra mim também. Tremendo. Nervoso.

Bufei. Tenho alguns conhecimentos de artes marciais. Meio enferrujado, é verdade, mas a memória é boa e no instinto a gente acaba fazendo coisas que nem imaginamos ser capazes. Podia dar uma surra num moleque de quinze (ou menos), com metade do meu tamanho, magricela e tremendo de medo. Mas não. Não quis arriscar. Não sei se foi insegurança pela arma e a dúvida. Dúvida de ser mais lento que o dedo no gatilho. Peguei qualquer cinco reais que tinha no bolso da calça e dei pra ele. Falei que só tinha aquilo. Li os seus olhos; sabia que eu estava mentindo. Mais do que isso: ele estava ciente de que eu sabia que ele sabia que eu estava mentindo. É meio chato isso, né? Dá um nó na cabeça essas frases longas e com palavras repetidas. A língua é uma merda. Opa, cadê o politicamente correto? Mamãe me educou pra nunca xingar. Tudo bem que ela solta uns palavrões em ocasiões raras, mas eu entendo. Acho que eu estresso ela demais. Mas também sou a salvação dela, né? Filhos... Vai entender. Acho que só compreenderei se for pai. Mas não devo ser pai, acho pouco provável. Não sou capaz de construir uma família. Será que Bacaninha iria ter filhos algum dia?

Bacaninha, ainda nervoso, resolveu não insistir. Baixou a arma, foi até a roleta, "escalou" o troço e foi pra perto do motorista. Pegou alguns trocados, já que o velho exercia a função de cobrador também. Não conseguiu levar tudo, era adrenalina demais pra apenas quinze anos. Ou menos, sei lá. Nunca fui muito bom adivinhando essas coisas.

Ele desceu do ônibus. Após alguns segundos, ouvi xingamentos, cochichos, palavras de indignação, etc. Voltei minha atenção para a chuva. Ao menos tentei, já que a garotinha no colo da mãe se pôs a chorar. E chorou até o meu ponto. Aí eu levantei, dei o sinal. Ou a cigarra. Naquela hora me veio uma música na cabeça. Não uma música já existente, mas algo que eu poderia usar pra compôr um dia. Isso acontece direto, é uma sensação boa. Me virei pra pequenina ali nos braços da mãe.

Por que chorar? Você ainda pode nos salvar...
Apenas depende de você, corrigir os erros da época em que eu ainda era bebê
Não sei quanto a mim, mas você não nasceu em vão. É o futuro dessa geração.

Ela adormeceu, sabe? Tipo, muito rápido. Foi engraçado. A mãe me agradeceu, com uma expressão simpática. Aí desci no meu ponto, pensando na vida. Pensando no bacaninha com sua camisa de "Salve o futuro". Mas pensando também em como eu havia criado aquela bosta. Mas que rima forçada, coisa de idiota. Descartei totalmente a possibilidade de usá-la algum dia.

É, acho que eu não tenho utilidade nenhuma. Boa sorte para a "de menor" dentro do ônibus, no colo da mãe. Queria saber o nome dela, aquela coisa que dorme com qualquer canção besta. Tão lindinha. Crianças. Espero que ela possa me perdoar um dia.

Carta a Rebeca

Texto da autoria de Pedro Casarim. Tomei a liberdade de postar aqui, mesmo sem o conhecimento do autor (por enquanto). Espero que os mais de dez anos de amizade influenciem no momento que resolver julgar-me com base na minha atitude precipitada.

Visitem: http://sobreclaudiaborges.blogspot.com.br/

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Rio de Janeiro, 25 de Junho de 2013

Rebecca,

São quatro pras seis da manhã e já ouço o ensaio de bom dia dos pássaros. Você está dormindo agora? Se criou juízo certamente está mas eu continuo o mesmo: vagabundo -- no melhor (ou não) sentido da palavra --, por isso te escrevo à essa hora. É melhor mesmo que esteja dançando em fantasias surreais, beijando pássaros, voando sobre Paris, ouvindo as nítidas palavras de um velho sábio num parque. Ou então até correndo de monstros ou coisa que o valha em seus delírios oníricos com assinatura de Poe. Não sei ao certo o porquê de estar te escrevendo. Apenas sinto que temos um laço que me faz ter que te contar em palavras o que penso ou o que sinto.

É tênue a linha que separa a paixão da amizade. Não vou falar em amor pois é uma palavra além de muito usada, muito forte e complexa. O que é a paixão além de uma amizade com laços corpóreos? Quais são as fronteiras que discernem amigos de amantes? Pode haver amor numa simples e sincera amizade e não existir um resquício sequer dele em um relacionamento à dois. O que é o casamento senão um pedaço de papel com registro em cartório e alianças nos dedos anelares? Namoro, noivado, casamento: os termos são indiferentes, não somos donos de ninguém. Não podemos atribuir sentimento de posse sobre uma pessoa, de modo que ela não nos pertence assim como nós não a pertencemos. O fato de sermos seres-humanos já nos torna irremediavelmente sós e independentes. Somos livres. 

Tenho que confessar: ainda é um pouco estranho pra mim nossa relação atual de amigos, visto que há pouco tempo atrás compartilhávamos de profunda intimidade e carinho. Não vou dizer que os sentimentos que tinha por você se esvaíram por completo mas que, de fato, diminuíram de intensidade: o ciúme, o zelo, o afeto. O de posse se foi completamente, tenho a compreensão de que não somos mais um casal. Mas, pensando até adiante, -- esse seria um passo a dar rumo ao progresso como ser-humano -- almejo desvincular da paixão a certeza da exclusividade. Meus sentimentos agora apenas tornaram-se leves e sem nenhum interesse secundário. Digo isso porque ainda sinto uma forte intimidade com você e por isso posso dizer que somos amigos, no sentido mais genuíno e puro dele. Também não posso negar que ainda sinto atração física por você, ainda te observo muito bela; e creio que isso não mudará.

Lembro com carinho nossas recordações que por vezes tomam de assalto minha imaginação: desde nossos momentos mais prosaicos aos mais íntimos. Com isso vejo que você foi uma bela parte da minha vida, e com certeza, -- no posto de primeiro amor -- terá um lugar guardado dentro de mim.

Bem, como você pode notar, estou utilizando de uma linguagem um pouco mais branda, não tão direta e explícita como costumo fazer. Acho que assim soa mais romântico e respeitoso, afinal agora não compartilhamos mais sussurros de volúpia. É um exercício, inclusive, para minha própria escrita. Será? -- posso estar fazendo uma grande burrada, mas vai saber... E nesse gancho aproveito pra propor um trato: por que não nos falemos por carta, à moda antiga? Pode parecer coisa de casal apaixonado água-com-açúcar mas assim acho melhor -- estou tentando otimizar meu tempo, com isso quero dizer abdicar das horas desperdiçadas na internet. Prefiro o contato presencial, ainda que menos confortável que o virtual, porém mais sincero. E você sabe, odeio rede social e afins. Além disso, estou exercitando a melhor qualidade de um escritor: a solidão.

Que nos esbarremos em alguma esquina de nossas vidas e continuemos trocando pedaços de psique um com o outro. Podemos nos corresponder quinzenalmente, que tal? -- ainda mais com a rotina que terei logo em breve de trabalho/faculdade: com certeza perderei toda a vida social que já não possuo.

Antigamente tinha a citação do filme como absoluta: "Le temps détruit tout." Mas percebi que ao mesmo tempo que destrói, ele também constrói outras coisas; ele cura -- nisso você estava certa. No mais, no menos, era isso que queria dizer. Não quero te "perder" porque, por incrível que pareça, você ainda é a pessoa com quem mais falo. No caso de novas histórias ou aforismos você saberá, não deixarei passar um detalhe. E não se esqueça do meu blog, talvez surja um escritor de verdade dali.

P.S.: Finalmente parei de fumar.


Meus beijos e abraços e fica bem,
Pedro Casarim